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terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Direito Internacional na antiguidade

Após ler, opinem: é possível afirmar a existência
de um direito internacional na Idade Antiga?

O direito internacional define-se como o direito aplicável à sociedade internacional. Essa definição, por óbvia que pareça, não constitui apenas uma constatação de fato, ela implica na assunção do pressuposto de que existe uma sociedade internacional distinta das sociedades nacionais e de que ela também é regida por um conjunto de regras jurídicas (NGUYEN, 1999, p.29).

Compreender como essa sociedade se constituiu e como o direito a ela aplicável adquiriu seus contornos é importante para entender a origem e o funcionamento atual de suas instituições jurídicas. Dentre essas instituições destacam-se o princípio da igualdade soberana dos Estados e o princípio do livre consentimento, fundamentos sobre os quais foi alicerçado o direito internacional moderno, cujo modelo até hoje fornece a moldura para as relações internacionais.

Accioly (2002, p.8), alertando para o caráter sempre arbitrário dessas divisões e chamando a atenção para seu propósito didático, identifica quatro períodos de evolução do direito internacional: “1) da antigüidade até os Tratados de Vestfália; 2) de 1648 até a Revolução Francesa e o Congresso de Viena de 1815; 3) do Congresso de Viena até a primeira guerra mundial; 4) de 1918 aos dias de hoje, com especial ênfase nos acontecimentos que se seguiram à segunda guerra mundial”.

No primeiro período são vislumbrados rudimentos do direito internacional, consistindo de regras resultantes do relacionamento de grupos humanos e que se tornaram crescentemente complexas e elaboradas com o desenvolvimento das civilizações e do intercâmbio entre elas.

Na Grécia antiga encontram-se manifestações de instituições como a arbitragem, a necessidade de declaração de guerra, a inviolabilidade dos mensageiros, o direito de asilo, a neutralização de certos lugares, o resgate e a troca de prisioneiros; muitas delas práticas de origem religiosa que foram adquirindo caráter jurídico (ACCIOLY, 2002, p.9). Além disso, os gregos já utilizavam dois instrumentos fundamentais das relações internacionais: a diplomacia e os tratados (NGUYEN, 1999, p.38).

Os antigos romanos, por outro lado, não reconheciam a existência de outros impérios, opondo a distinção entre civilizados (eles mesmos) e bárbaros (todos os não-romanos). As suas relações com esses outros povos eram orientadas por normas religiosas, chamadas de jus fetiale, que, levando em conta augúrios, regulavam a declaração da guerra e a celebração da paz. (ACCIOLY, 2002, p.9)

Esse jus fetiale, na visão de Nguyen (1999, p.39), não apresenta características de direito internacional, pois era determinado unilateralmente por Roma, ou seja, tratava-se de um conjunto de normas internas aplicadas às relações com os bárbaros, distanciando-se da idéia de um direito construído a partir de relações jurídicas estabelecidas entre sujeitos que se reconheciam mutuamente.

Por outro lado, mesmo considerando que a pretensão de domínio universal do império romano o tenha impedido de relacionar-se com os demais povos da época com base em obrigações recíprocas, não se pode ignorar a contribuição que por eles dada ao direito internacional através do jus gentium.

Diferente do jus civile, que se aplicava exclusivamente aos cidadãos romanos, o jus gentium era destinado a regular as relações entre romanos e não-romanos. Tais relações eram de caráter predominantemente comercial e, portanto, de direito privado, distanciando-se da idéia de direito internacional público. “No entanto, [o jus gentium] responde à idéia fundamental de que deveria existir um direito comum da humanidade que, para valer para todos os povos, deveria fundar-se em princípios extraídos da razão universal”. (NGUYEN, 1999, p.39-40)

O jus gentium reconhecia o direito de estrangeiros, em geral comerciantes, à vida, à propriedade e à locomoção, isto no seio de um império que não respeitava ou sequer admitia o direito à existência de outras comunidades políticas fora de suas fronteiras. Ele estabeleceu a relação entre direitos comuns universais e direito natural, resgatada por medievais, modernos e contemporâneos; definiu a anterioridade dos direitos básicos dos indivíduos em relação à constituição dos Estados modernos; sendo também possível perceber nele natureza semelhante às dos direitos mínimos, hoje reconhecidos a todas as pessoas, independentemente de sua condição ou nacionalidade.

Ao legado romano veio somar-se, ainda na antiguidade, a contribuição judaico-cristã, cuja influência é destacada por Accioly (2002, p.9), ao afirmar que “[...] só o advento do Cristianismo [...] pôde restabelecer no mundo a ordem e a civilização. Com ele, surgiram as doutrinas de igualdade e fraternidade entre os homens, e a lei da força, predominante na antigüidade, foi condenada. Certos princípios jurídicos, certas instituições jurídicas foram assim se impondo e se desenvolvendo”.

A aberta ênfase ao cristianismo no parágrafo anterior pode parecer estranha a alguns, no entanto, convém esclarecer que Hildebrando Accioly publicou a primeira edição de seu manual na década 1950, época em que o multiculturalismo e a correção política não eram uma preocupação comum e era prática corrente ignorar as contribuições da cultura oriental. No entanto, a realização de tratados, a prática da diplomacia e reflexões sobre as relações sociais e a paz foram práticas existentes entre os antigos chineses, egípcios, babilônios, fenícios, hebreus, assírios, persas e macedônios (cf. NGUYEN, 1999, p.37-38).

De toda forma, junto com os apelos generosos do cristianismo, veio também a pretensão de universalidade religiosa, decorrente do comando para propagar a Palavra (Mateus 28, 19; Marcos 16, 15; Lucas 24, 47; João 20, 21; Atos 1, 8). A proposta de universalidade cristã veio juntar-se à pretensão de universalidade romana e ambas, a religião dos oprimidos e o império dos opressores, acabaram por se influenciar reciprocamente. Destarte, ao final da Idade Antiga, o Império Romano era cristão e a igreja cristã era universal.

REFERÊNCIAS

ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G. E. do Nascimento e. Manual de Direito Internacional Público. 15.ed. Revista e atualizada por Paulo Borba Casella. São Paulo: Saraiva, 2002. 566p.
NGUYEN, Quoc Dinh; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain. Direito Internacional Público. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1999. 1230p.

3 comentários:

  1. Entendo que, para que se visualize a constituição, ao menos embrionária, de um direito internacional (na antiguidade, ou em qualquer tempo), deve-se levar em consideração quais seriam os seus pressupostos mais primitivos e fundamentais. Ao meu ver, duas seriam as frentes, para se considerar o surgimento de um direito internacional, donde, a combinação entre as mesmas resultaria num modelo próximo do que se tem atualmente: i) o intercâmbio entre grupos distintos (objetiva); ou, ii) a existência de Estados bem definidos (subjetiva). Nos tempos primitivos, a simples formação tribal entre os homens figurava como a fagulha de uma constituição estatal; não havia a complexa estruturação do conceito de Estado que temos hoje, mas o mínimo de organização social já existia; podemos dizer, então, que surgiam as primeiras linhas de um direito internacional quando do mero intercâmbio realizado entre as mais variadas tribos (seja com a disputa de territórios, seja na cooperação de qualquer gênero) - esta seria a primeira hipótese. Por outro lado, se considerado como pressuposto básico do direito internacional a existência de Estados propriamente ditos, ou seja, bem definidos e próximos do conceito que se tem atualmente, ainda que não realizadores de intercâmbio entre si, poder-se-ia dizer que havia um direito internacional pautado no isolamento dos Estados - como se fosse uma maxima de abstenção internacional; a relação entre nações se daria de forma negativa, abstencionista, não dialogadora. Esta seria a segunda hipótese, ainda que não verificada na história (mera conjecturação). Então, veja que, num primeiro momento, não se tem o principal sujeito de uma relação internacional nos moldes de hoje: o Estado-Nação, mas seu objeto já existia: o intercâmbio entre grupos distintos, portadores de identidades próprias. Num segundo momento, tal relação se daria de maneira inversa.
    O direito internacional contemporâneo, portanto, possui, basicamente, em sua definição, a combinação dessas duas frentes (Estado/intercâmbio), com todos os pressupostos que lhes são inerentes.
    Desse modo, presentes quaisquer das frentes apresentadas, seja em qual tempo for da história, ter-se-á, em maior ou menor grau, a existência de um Direito Internacional.

    Stephano Serejo. Direito, 8º período noturno. UNDB.

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  2. Salve Stephano! Interessante comentário.
    De fato, havendo comunidades humanas se relacionando, algum tipo de regra haverá para essa relação, é a confirmação da velha máxima: ubi societas, ibi jus.
    Não entendi bem a segunda frente com a qual você trabalha. Para existir direito internacional como conhecemos na modernidade e na contemporaneidade é pressuposto a existência de Estados, com governo soberano, território e população.
    No entanto, apenas a existência de Estados seria insuficiente para configurar a existência do direito internacional. É necessário que a esse elemento seja acrescentado outro, qual seja, a existência de relações, sejam de guerra ou paz.
    Destarte, para haver algo semelhante ao direito internacional, basta a existência de relações entre grupos humanos minimamente organizados. Já para configurar o direito internacional a partir da modernidade, é preciso que exista um Estado soberano que atue como protagonista dessas relações.

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  3. Bom, Raposo. Vamos ver se eu consigo esclarecer o segundo ponto. A segunda frente diz respeito ao aspecto subjetivo do DIP, não sendo observado de forma isolada, mas sobressaltada ao aspecto objetivo. Veja que o aspecto objetivo nesse momento pode ser visto como um abstencionismo, uma relação negativa - abstencionismo interestatal -, mas, ainda assim, uma relação. Para me fazer entender melhor, faço uma analogia com os ensinamentos que já tivéramos em Direito Penal ao estudarmos as Teorias da Ação. Lembro bem da aula de Cláudio Cabral, então professor da disciplina: a ação pode ser positiva ou negativa. A primeira é a ação propriamente dita, enquanto a segunda é a omissão (ação negativa). Omissão não implica dizer ausência de ação. São conceitos distintos, apesar de aparentemente conexos.
    A idéia que tento passar em muito se assemelha a essa compreensão de 'ação' no Direito Penal. Portanto, não falo em ausência de relação, mas relação negativa - ficaria convencionado entre os Estados a não intervenção, seja de qual ordem for, de uns em relação aos outros e vice-versa.
    Levantei essa hipótese (subjetiva em maior grau) apenas para ilustrar a possível presença de dois momentos distintos na formação do DIP. Hipotetizei, contudo, desconhecendo se realmente ocorrera situação semelhante em nossa história. Não me recordo de nenhum momento da história onde houvesse esse abstencionismo entre grupos humanos/Estados. Gostaria de saber se realmente não data nenhum cenário desse tipo, e, havendo um, que seja aqui mencionado.
    Espero ter sido mais claro agora, e fica essa última indagação a título de curiosidade.

    Abraço.

    Stephano Serejo 8º/noturno UNDB.

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