Compreender como essa sociedade se constituiu e como o direito a ela aplicável adquiriu seus contornos é importante para entender a origem e o funcionamento atual de suas instituições jurídicas. Dentre essas instituições destacam-se o princípio da igualdade soberana dos Estados e o princípio do livre consentimento, fundamentos sobre os quais foi alicerçado o direito internacional moderno, cujo modelo até hoje fornece a moldura para as relações internacionais.
Accioly (2002, p.8), alertando para o caráter sempre arbitrário dessas divisões e chamando a atenção para seu propósito didático, identifica quatro períodos de evolução do direito internacional: “1) da antigüidade até os Tratados de Vestfália; 2) de 1648 até a Revolução Francesa e o Congresso de Viena de 1815; 3) do Congresso de Viena até a primeira guerra mundial; 4) de 1918 aos dias de hoje, com especial ênfase nos acontecimentos que se seguiram à segunda guerra mundial”.
No primeiro período são vislumbrados rudimentos do direito internacional, consistindo de regras resultantes do relacionamento de grupos humanos e que se tornaram crescentemente complexas e elaboradas com o desenvolvimento das civilizações e do intercâmbio entre elas.
Na Grécia antiga encontram-se manifestações de instituições como a arbitragem, a necessidade de declaração de guerra, a inviolabilidade dos mensageiros, o direito de asilo, a neutralização de certos lugares, o resgate e a troca de prisioneiros; muitas delas práticas de origem religiosa que foram adquirindo caráter jurídico (ACCIOLY, 2002, p.9). Além disso, os gregos já utilizavam dois instrumentos fundamentais das relações internacionais: a diplomacia e os tratados (NGUYEN, 1999, p.38).
Os antigos romanos, por outro lado, não reconheciam a existência de outros impérios, opondo a distinção entre civilizados (eles mesmos) e bárbaros (todos os não-romanos). As suas relações com esses outros povos eram orientadas por normas religiosas, chamadas de jus fetiale, que, levando em conta augúrios, regulavam a declaração da guerra e a celebração da paz. (ACCIOLY, 2002, p.9)
Esse jus fetiale, na visão de Nguyen (1999, p.39), não apresenta características de direito internacional, pois era determinado unilateralmente por Roma, ou seja, tratava-se de um conjunto de normas internas aplicadas às relações com os bárbaros, distanciando-se da idéia de um direito construído a partir de relações jurídicas estabelecidas entre sujeitos que se reconheciam mutuamente.
Por outro lado, mesmo considerando que a pretensão de domínio universal do império romano o tenha impedido de relacionar-se com os demais povos da época com base em obrigações recíprocas, não se pode ignorar a contribuição que por eles dada ao direito internacional através do jus gentium.
Diferente do jus civile, que se aplicava exclusivamente aos cidadãos romanos, o jus gentium era destinado a regular as relações entre romanos e não-romanos. Tais relações eram de caráter predominantemente comercial e, portanto, de direito privado, distanciando-se da idéia de direito internacional público. “No entanto, [o jus gentium] responde à idéia fundamental de que deveria existir um direito comum da humanidade que, para valer para todos os povos, deveria fundar-se em princípios extraídos da razão universal”. (NGUYEN, 1999, p.39-40)
O jus gentium reconhecia o direito de estrangeiros, em geral comerciantes, à vida, à propriedade e à locomoção, isto no seio de um império que não respeitava ou sequer admitia o direito à existência de outras comunidades políticas fora de suas fronteiras. Ele estabeleceu a relação entre direitos comuns universais e direito natural, resgatada por medievais, modernos e contemporâneos; definiu a anterioridade dos direitos básicos dos indivíduos em relação à constituição dos Estados modernos; sendo também possível perceber nele natureza semelhante às dos direitos mínimos, hoje reconhecidos a todas as pessoas, independentemente de sua condição ou nacionalidade.
Ao legado romano veio somar-se, ainda na antiguidade, a contribuição judaico-cristã, cuja influência é destacada por Accioly (2002, p.9), ao afirmar que “[...] só o advento do Cristianismo [...] pôde restabelecer no mundo a ordem e a civilização. Com ele, surgiram as doutrinas de igualdade e fraternidade entre os homens, e a lei da força, predominante na antigüidade, foi condenada. Certos princípios jurídicos, certas instituições jurídicas foram assim se impondo e se desenvolvendo”.
A aberta ênfase ao cristianismo no parágrafo anterior pode parecer estranha a alguns, no entanto, convém esclarecer que Hildebrando Accioly publicou a primeira edição de seu manual na década 1950, época em que o multiculturalismo e a correção política não eram uma preocupação comum e era prática corrente ignorar as contribuições da cultura oriental. No entanto, a realização de tratados, a prática da diplomacia e reflexões sobre as relações sociais e a paz foram práticas existentes entre os antigos chineses, egípcios, babilônios, fenícios, hebreus, assírios, persas e macedônios (cf. NGUYEN, 1999, p.37-38).
De toda forma, junto com os apelos generosos do cristianismo, veio também a pretensão de universalidade religiosa, decorrente do comando para propagar a Palavra (Mateus 28, 19; Marcos 16, 15; Lucas 24, 47; João 20, 21; Atos 1, 8). A proposta de universalidade cristã veio juntar-se à pretensão de universalidade romana e ambas, a religião dos oprimidos e o império dos opressores, acabaram por se influenciar reciprocamente. Destarte, ao final da Idade Antiga, o Império Romano era cristão e a igreja cristã era universal.
REFERÊNCIAS
ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G. E. do Nascimento e. Manual de Direito Internacional Público. 15.ed. Revista e atualizada por Paulo Borba Casella. São Paulo: Saraiva, 2002. 566p.
NGUYEN, Quoc Dinh; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain. Direito Internacional Público. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1999. 1230p.